Uma rosa para Reneé Magritte ou: João Carlos Teixeira Gomes, poeta do indomável.
Por Silvério Duque, da Bahia.
É dia 31 de março. Um amigo e poeta, Bernardo Linhares, presenteia-me com um livro – o mais singelo e perfeito dos presentes àqueles que amam a leitura – mas não sem, antes, tecer uma urdidura de elogios à obra que me oferta.
Em seu projeto gráfico, o livro é simplório, apesar de pertencer a uma grande editora, entretanto, chama-me a atenção, primeiramente, pela bela rosa rubra que se abre imensa e unânime, em um quarto vermelho – paixão sobre paixão, a qual eu logo reconheço como uma famosa tela de Magritte. Em seguida, fixo os meus olhos no título, A Esfinge Contemplada, e uma profusão de imagens e mitos arrebata-me a atenção. Por fim, o nome de seu autor: João Carlos Teixeira Gomes, poeta baiano, intelectual de peso, ensaísta mordaz e grande estudioso de ninguém menos que nosso Gregório de Matos, o Boca do Inferno. Da ultima vez que vi seu nome numa capa de livro, este o dividia com um, hoje, extinto Antônio Carlos Magalhães, pousando de mafioso. O livro era Memória das Trevas, foi sucesso de público e crítica, revelando um período da política baiana tão obscuro e abjeto quanto o que vivemos atualmente, por mais pó-de-arroz que a propaganda enganosa, paga por nossos altos impostos, queira borrifar, consagrando seu autor como grande estudioso de nossa política e cultura.
Mas, e o poeta? O que dizer do homem de versos, dotado de uma condição divinatória, mesmo morrendo de amor, como Maiakovski e Drummond, pelas ideologias esquerdistas? O que dizer de João Carlos Teixeira Gomes e seu A Esfinge Contemplada?
Logo, à primeira vista, é fácil perceber o domínio que seu autor possui tanto da técnica quanto de toda a esfera expressiva que esta técnica deverá abarcar. É um livro de emoções, é claro, toda arte busca “fazer sentir”, mas não se engane quem quer que seja que, neste livro, revela-se um lirismo barato e repetitivo; a poesia contida em A Esfinge Contemplada é densa, inquieta e, deveras, contemplativa. À maneira dos grandes poetas que surgiram após o período modernista, João Carlos Teixeira Gomes se mostra possuidor daquela capacidade de realização que faz com que uma mera “pedra perdida de duro calcário espesso”, à maneira de um Drummond, deixe de ser um objeto qualquer perdido em meio ao grande esplendor do mundo para tornar-se algo de inquestionável singularidade, fazendo-se perceptível e emocionante, mas se erguendo através da capacidade de elaboração técnica, de uma estrutura lingüística que tem início na mera emoção que fenômenos tão simples, como o desta “pedra in natura”, podem produzir em nosso espírito.
Era uma pedra perdida,
de duro calcário espesso.
Era uma pedra in natura.
Não era vidro, nem gesso.
No chão crestado jazia,
alheia às paixões do mundo:
argila da eternidade,
crosta do tempo infecundo.
Cauteloso, examinei-a
tomando-a na mão discreta:
— É algo que somente existe
em sua essência incompleta.
Corra o tempo fugidio
e há de ser sempre o que é:
forma pura que se basta
sem se dar conta nem fé,
massa vã que se empareda
num rude universo tosco,
presa dos próprios limites
contidos no brilho fosco.
Não pensa, não quer, não sonha.
Nada sabe nem aspira.
Mas eu, que choro e que tenho
um coração que delira,
que sinto o vibrar da cólera
e do fervor mais profundo,
eu logo serei fumaça
dissolvida além do mundo,
matéria desativada
ou pó de humana carcaça
— mas a pedra reinará
na glória turva do nada.
Daqui a mais alguns anos
(que depressa hão-de passar)
já serei fumo esvaído
- mas a pedra há de restar.
E assim ficará, invicta,
sem desejos nem remorsos,
pairando com soberbia
no que sobrar dos meus ossos.
Com raiva, num puro assomo,
tomei a pedra na mão
e lancei-a ao mar profundo:
nada buliu na manhã
nem a paz nimbou o mundo.
Pois à muda natureza
são coisas que não consomem
a dureza de uma pedra
e os sentimentos de um homem.
Alheia a estas maquinações cooperativistas de nossos intelectuais, a poesia de João Carlos Teixeira Gomes chega-me mais de vinte anos depois (a edição é de 1988), como uma das obras mais elaboradas e representativas de nossa Poesia Contemporânea... Uma poesia que se abre cada vez mais nova e mais bela como aquela imensa rosa na Le tombeau des lutteurs, de René Magritte, entre o desvendar da modernidade e o cultivo consciente de uma tradição poética cada vez mais forte quanto mais reaparece. A Esfinge Contemplada, principalmente com seus sonetos, arrebata qualquer leitor para uma atmosfera super-elaborada do universo poético (e do universo formal da grande poesia) cuja essência se encontra nas muitas questões de natureza existencial que ele suscita.
Algo que só alguém que aprendeu a dominar os intricados meneios que a poesia pode criar, verdadeiramente.