Podemos conversar?
Hermógenes acordou, café com o filho mais novo, olhada no jornal e seus Bin Laden, o Osama e Obama; Fukushima já foi para a História.
A esposa surge e diz: "Precisamos conversar". Entretanto preocupada com o café para a mãezinha, nada mais diz.
Vai Hermó ao escritório, anos e anos, a bunda já moldada conforme a cadeira e ao passar pela portaria o sempre atento zelador detona, "senhor, podemos conversar?".
Com alguma pressa para resolver assunto inadiável pede tempo, para na calma mais adiante conversar.
Passando pelo departamento de produção houve do gerente daquela área, após rápido bom-dia, se "podemos conversar?". Sim, sem problemas, mais adiante "em minha sala, pode ser?"...
Dirigindo-se ao departamento administrativo, sem chance de bom-dia, já é atropelado com um insistente "podemos conversar? É coisa séria!".
"Problemas internos ou externos?"
"Internos".
"Hm, tudo bem, daqui a pouco em minha sala, só preciso resolver algo."
Passa pela sala de projetos, um dos projetistas mais antigos, semblante grave, ao ver o velho Hermógenes se aproxima ligeiro e diz : "Precisamos conversar".
"Coisa pessoal ou empresa"?
"Um pouco de ambos".
"Óquei, venha à minha sala, pouco antes do almoço, há gente na fila..."
Desce à fábrica, a tecnologia e as máquinas não precisam de conversas, só ações. Ao passar pelo almoxarifado, o atendente sai e se adianta com insistente "senhor, precisamos conversar e muito."
"Assunto pessoal ou de almoxarifado?".
"Um pouco de ambos, muito, muito extenso."
"Muito bem, perdões se não o faço agora. Sou péssimo ouvinte, poderia me escrever por e-mail?".
"Claro, é para já..."
Na sala toca o telefone, o amigo em débito pergunta "podemos conversar?"
"Sim, sim" já imaginando e acertando na mosca "não há recursos, a vida difícil, os negócios péssimos, as despesas altas e claro o do amigo, bem, esse pode esperar".
Por mais muitos meses... coisa de anos.
Vai ao jardim da fabriqueta olhar as plantas, o faxineiro se aproxima e apresenta o indefectível "eu precisava conversar com o senhor, é coisa séria."
"Pessoal ou problema de emprego?"
"Um pouco de ambos...".
"Pode ser amanhã? Eu estou subindo para o escritório, me procure."
No fim do dia, a batidinha à porta da sala, a vendedora de acionamentos esgueira-se e pergunta: "Podemos conversar um instante?".
Vendas, sempre importante. O que seria? Perda de pedido, falta de produto?
"É que vou sair para fazer uma cirurgia no joelho, queria me despedir, volto daqui mes e meio...".
Ufa, "boa sorte, que São Judas Tadeu guie a mão de seu médico"...
Fim do expediente, vai ao sanitário. Lava as mãos após, olha para o espelho, escritório em silêncio; é o último a ir, relembra bobagens de "capitão é o último a descer de bordo", confere as rugas, os cabelos esbranquiçados, o branco dos olhos não mais tão branco.
Apruma-se, enxugando as mãos e fitando a imagem, detona:
"Precisamos conversar."